No dia 24 de janeiro de 1835, a cidade de Salvador presenciava um dos levantes mais significativos da história brasileira. Foi a Revolta dos Malês, um movimento de africanose muçulmanos, muitos deles escravizados, que lutavam não apenas por liberdade do trabalho forçado, mas também por liberdade religiosa.
O termo “malê” vem de “imale”, que significa muçulmano na língua iorubá, ou nagô. Esses indivíduos eram, em grande parte, nativos da região que hoje corresponde a Benim, Togo e Nigéria. A alfabetização em árabe era comum entre eles, permitindo a escrita de planos e a coordenação de ações de forma discreta, dificultando a compreensão pelas autoridades coloniais.
Um documento emblemático dessa luta é o manuscrito intitulado “Livrinho Encontrado Preso ao Pescoço de um Negro Morto Durante a Insurreição dos Malês na Bahia”, composto por 144 páginas com trechos em português e árabe. Este texto, que inclui passagens do Alcorão, aponta para a oralidade e possivelmente para exercícios de recitação entre os malês.
Na madrugada de 24 para 25 de janeiro, cerca de 600 amotinados iniciaram o levante, que foi rapidamente sufocado pelo governo. Estima-se que 20% dos insurgentes foram mortos pela polícia, enquanto muitos outros enfrentaram punições severas, como açoitamentos e exílio. Um dos feridos foi levado ao Hospício de Jerusalém de Salvador, que cuidava de doentes e necessitados.
Este homem, cuja identidade não é completamente conhecida, teve um destino trágico. Seu crânio foi contrabandeado para a Universidade de Harvard, onde se encontra até hoje, pelas mãos de Gideon T. Snow, um proeminente diplomata que atuou em várias regiões do Brasil. O crânio chegou à universidade em um período em que a ciência buscava relações entre biologia e comportamento cultural, uma prática considerada racista e eugênica nos dias atuais.
Atualmente, o crânio está sob a guarda do Peabody Museum, que abriga uma vasta coleção de materiais antropológicos. Este acervo inclui mais de 1,2 milhão de itens culturais, além de fotos e outros documentos. A presença do crânio nagô na coleção de Harvard foi revelada em 2022, durante um mapeamento dos restos humanos armazenados na instituição, evidenciando o legado da escravidão na estrutura acadêmica e seus danos históricos.
O relatório de Harvard destaca que os restos mortos não são utilizados em práticas educacionais, apenas figuram como parte de coleções museológicas. No total, foram identificados mais de 7 mil indígenas da América do Norte e 19 africanos escravizados na instituição, trazendo à tona questões sobre a apropriação cultural e o racismo institucional.
“Os restos humanos examinados neste relatório foram adquiridos sob regimes violentos e desumanos, refletindo a cumplicidade da Universidade com esses sistemas imorais”, enfatiza o relatório. Diversas figuras públicas e acadêmicas, incluindo o Sheik Ahmad Abdul, do Centro Cultural Islâmico da Bahia, têm se mobilizado pela repatriação desses restos mortais.
O Movimento pela Repatriação
Desde 2022, o Sheik Abdul lidera a campanha pelo retorno do crânio, que recebeu o nome carinhoso de Arakunrin, palavra do iorubá que significa “irmão”. Ele menciona que os princípios do islamismo exaltam o respeito ao ser humano, afirmando que nenhum muçulmano pode ter partes do corpo expostas em museus ou transformadas em mercadoria.
Em 2025, a Revolta dos Malês completará 190 anos, e há a expectativa de que o crânio de Arakunrin seja repatriado nessa ocasião. Segundo Abdul, essa devolução servirá para recordar a luta pela liberdade e igualdade. “Toda a sociedade está unida na demanda por esse retorno”, diz ele.
Pesquisadores brasileiros e internacionais estão colaborando no Grupo de Trabalho Arakunrin, que promove discussões sobre a repatriação do crânio. Durante um seminário na Universidade de Toronto, o Comitê para o Repatriamento de Restos Humanos de Harvard manifestou interesse em dialogar sobre a devolução do crânio à comunidade muçulmana da Bahia.
O historiador Bruno Véras, parte do Grupo de Trabalho, acredita que há boas chances de que o crânio retorne em 2025. “A repatriação durante o aniversário de 190 anos da revolta será um marco significativo na história da memória dos africanos, muçulmanos e escravizados”, afirma Véras.
Além do simbolismo do retorno, o crânio será brevemente analisado por cientistas brasileiros. Há planos de realizar um estudo da idade de Arakunrin a partir de sua arcada dentária e uma tomografia computadorizada, possibilitando a reconstrução digital de seu rosto — um importante passo para contar a história de um homem que lutou pela liberdade no século XIX.
Esses procedimentos serão rápidos, pois a comunidade científica reconhece que o crânio pertence, na verdade, à comunidade muçulmana e nagô da Bahia, que iniciará os rituais religiosos apropriados. O Sheik Abdul destaca que rituais fúnebres são significativos, independentemente da forma como o corpo foi preservado. O crânio receberá um banho, perfumes e orações, para, finalmente, ser enterrado de acordo com a tradição islâmica, encerrando assim um ciclo de quase dois séculos.